Por uma nova política do primeiro contato
- isabelitacrosariol
- 4 de dez.
- 5 min de leitura
Notas para uma anamnese que se demora e escuta

Profa. Dra. Isabelita Crosariol
(IFSP - campus São José dos Campos)
Este texto inaugura uma investigação que, à primeira vista, parece literária (e também é) mas que, ao mesmo tempo, tensiona questões centrais das anamneses habitualmente aplicadas antes de um treinamento físico. Aqui, problematizo o modo como escutamos, perguntamos e enquadramos quem chega para treinar, explorando os limites e os riscos de formular perguntas que, sem cuidado, reduzem vidas a dados. É uma escrita com alta carga teórica, mas com gestos de leveza e cuidado (que busquei construir com a literatura), porque questionar modelos exige também deslocar a forma.
Escolhi, para isso, como interlocutor, Ruy Duarte de Carvalho, escritor angolano cuja obra pesquisei no Mestrado e no Doutorado, e que, embora já falecido, tornou-se interlocutor possível para esta travessia. Foi ele quem me surgiu quando precisei de alguém para escutar comigo esse primeiro esboço de pensamento: um texto que considero o embrião conceitual do que viria a ser o APCM: Agenciamento de Primeiro Contato para o Movimento, minha proposta de anamnese ampliada para práticas corporais, fundada na escuta, na relação e na ética do cuidado.
A seguir, a carta.
Ruy,
Dizem que o começo é simples: altura, peso, idade. Mas o começo nunca é simples. É o instante em que uma vida toca outra e já não há manual. Você saberia. Não há nada mais político do que esse primeiro gesto de escuta. A anamnese é o campo de batalha do sensível. Ali o corpo chega e o mundo chega junto com ele.
Foucault ensinou a desconfiar do cuidado que mede, do cuidado que vigia, do cuidado que quer saber para controlar. Mas há um saber que se constrói no tropeço, e é esse que me interessa: o saber que se faz entre o “como você está?” e o silêncio que vem depois. Deleuze dizia que pensar é sempre efeito de forças, daquilo que nos afeta e nos obriga a pensar. E se a anamnese for isso? Um dispositivo de pensar com o corpo do outro. Não sobre ele. Com. Um encontro de potências: a vida que chega e a vida que recebe, ambas em risco.
Quando alguém entra e se senta, o treino já começou. Não há prévia. O corpo já fala, mesmo calado: no modo como se apoia, no ritmo da respiração, no olhar que evita. E eu, que pergunto, também sou olhada. Não há neutralidade. Há uma coreografia que se faz na linguagem. O biopoder, Ruy, está na tentação de querer nomear antes de ouvir. Mas a vida escapa, ela sempre escapa. É uma força inquieta, que recusa o diagnóstico, que ri dos protocolos. Deleuze chamaria essa insistência de vida de biopotência: o que segue em movimento apesar das máquinas de normalização.
Às vezes, penso que a anamnese repete (em miniatura) a velha cena da colonização. Um corpo que chega, outro que interroga. Um território convertido em mapa para o saber do outro. O formulário é uma caravela: chega em nome do cuidado, mas traz no porão a ânsia de medir, descobrir, traduzir. Se o gesto não é guiado pela escuta, ele invade. E se invade, fere. Mbembe talvez dissesse que é assim que o poder se disfarça de zelo e, ao prometer proteger, condena. Relegado à morte simbólica, o outro deixa de existir como voz. A anamnese, quando se torna colonizadora, faz o mesmo: mata o outro pela tradução, apaga o que não entende.
É nesse ponto que o cuidado se confunde com a necropolítica – quando escutar vira dissecar,e o vivo é reduzido a dado. Mas há também os que o poder nem chega a escutar. A necropolítica tem seus alvos: corpos negros, pobres, femininos, desviantes: vidas que o sistema considera secundárias. São esses corpos que raramente atravessam a porta de uma academia, não porque não queiram mover-se, mas porque o mundo os move antes: em jornadas, em lutas, em cansaços.
Quando o exercício físico não cabe na vida, não é o corpo que falha: é a sociedade que recusa respirar junto. Pensar o exercício como direito é também imaginar formas de torná-lo possível, sem cobrança, sem fardo, sem ideal de perfeição. Ouvi-los (realmente ouvi-los) é devolver o exercício à sua função de vida: abrir espaço, dentro e fora do corpo, para que a existência volte a ter fôlego. Porque mover-se, para quem sempre precisou sobreviver, é também um modo de sair do circuito da morte que o mundo insiste em lhes destinar.
Eu, se não vigio o meu próprio gesto, posso repetir essa história. Posso invadir quando deveria escutar. Por isso, a escuta que proponho é outra: não quer conquistar o outro, quer habitar com. Não há “eu” e “outro”, há travessia. Uma cosmopolítica da presença. A anamnese precisa descolonizar o próprio gesto de perguntar. Escutar é recusar o papel de invasor. É permanecer estrangeira. mas responsável. Stengers me ensinou que pensar é desacelerar. Desacelerar é abrir tempo para o vivo se anunciar. E talvez seja isso que falta na maioria das anamneses: tempo. Porque escutar o outro exige o tempo do outro.
Quando alguém chega, não trago só prancheta, trago presença. A anamnese que proponho não é checklist, é travessia. Não começa perguntando “onde dói?”, mas “como tem sido existir?”. Não busca contraindicações, busca relações. O corpo não é o obstáculo, é o argumento. No fundo, o que se avalia ali não é o passado clínico, mas a possibilidade do presente. Será que esse treino cabe nesta vida? Será que este ritmo respeita o corpo que existe por dentro da rotina? Será que a saúde, aqui, é promessa ou imposição?
O formulário, Ruy, tenta salvar o profissional da incerteza. Mas é da incerteza que nasce a escuta. A anamnese viva não teme não saber. Ela se faz de perguntas que não esperam resposta imediata. “Respira”, digo. Mas quem respira sou eu também. O ar é partilhado e nele se mede o cuidado. Avaliar, então, não é medir. É inspirar junto. É reconhecer que o outro é também quem me avalia enquanto falo.
Você entenderia, Ruy, porque também escrevia com o corpo encostado na terra. Ouvia o vento e os passos dos pastores. Enquanto o mundo contava cabeças, você contava respiros. Sabia que o chão é o primeiro laboratório da escuta. E que o vento, quando passa, não leva embora, ensina ritmo. A Educação Física (e toda prática que se diz de saúde) precisa reaprender o chão. Não o chão do pódio, mas o da convivência. O chão de oferta. O corpo não é máquina: é território. E o território pede cuidado, não comando.
Foucault desconfiava do exame; eu desconfio do diagnóstico apressado. Deleuze desconfiava da representação; eu desconfio da pergunta que encerra. Stengers desconfiava da pressa; eu desconfio da escuta que não se demora. Toda anamnese que se quer viva precisa se permitir errância. Não para ser imprecisa, mas para ser fidedigna. É na errância que o corpo se apresenta inteiro. Talvez o que eu busque, sem nomear, seja uma política do primeiro contato: um modo de acolher que seja também modo de resistir. Resistir à pressa, ao número, à normalidade. Escutar, para isso, é o gesto mais subversivo que conheço.
No fim, escrever esta carta é inaugurar um novo gesto. Em meio a tantas formas já dadas, é um modo de reconhecer a primazia do desenho vital e seguir os agenciamentos que ainda resistem ao esquecimento da vida, da vida que excede o biológico. É propor ir além de uma anamnese (que mede, classifica e encerra) ao reivindicar uma anamnese que se demora, pergunta e cuida. Uma anamnese ampliada, que reconhece a saúde como travessia e o cuidado como modo de existir.
Porque talvez meu exercício – do corpo, da escrita, do cuidado – seja sempre isso: um ensaio de vida integral diante de um mundo que insiste em adoecer. E, enquanto houver fôlego, escrever será meu jeito de também respirar o mundo por dentro, senti-lo habitando em mim, e deixar que disso nasça o que ainda não tem nome, mas já se move.
05/11/2025


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